Somos um movimento de organizações da sociedade que a partir da identificação, sistematização e mapeamento de experiências procura se articular no estado com o objetivo de fortalecer as iniciativas agroecológicas
“O que conhecer, como conhecer, para que conhecer, a favor de que e de quem conhecer – e, por conseguinte, contra o que e contra quem conhecer – são questões teórico-práticas e não intelectualistas que a educação nos expõe enquanto ato de conhecimento […], não há, por isso mesmo, especialistas neutros, “proprietários” de técnicas também neutras […] não há “metodologistas” neutros”. Cartas à Guiné-Bisau
Essas e outras reflexões de Paulo Freire foram algumas das referências da Educação Popular que mobilizaram os estudos e debates do processo de formação “O método de Sistematização de Experiências na Educação Popular”, realizado entre os dias 4 a 6 de maio de 2015, em Seropédica (RJ). Entre os participantes do curso, membros das regionais Norte, Costa Verde, Metropolitana e SerraMar da Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (AARJ) e outros representantes da região Sudeste.
A atividade, que busca refletir e qualificar a prática de sistematização das experiências agroecológicas, compõe o segundo módulo de um dos cursos do Projeto “Ambientes de Interação Agroecológica: Ensino, Pesquisa e Expressões da Agroecologia no Estado do Rio de Janeiro” (NIA/UFRRJ e AARJ) e interage também com o Projeto “Comboio Agroecológico do Sudeste” (UFV/Rede de Núcleos de Agroecologia).
O projeto “Ambientes de Interação Agroecológica” tem, entre outros objetivos, o desafio de compreender – através de pesquisas de campo – os limites e potencialidades de ampliação das iniciativas de agroecologia no estado do Rio de Janeiro e proporcionar novos ambientes de aprendizagem para técnicos de ATER, professores, pesquisadores e estudantes. Nesse processo, prevê-se a sistematização de experiências de resistência e anuncio da agroecologia nos mais diferentes territórios.
Para Cristhiane Amâncio, pesquisadora da Embrapa Agrobiologia, da direção da ABA e uma das facilitadoras do processo, é “preciso exercitar o olhar integrado entre a avaliação, investigação e sistematização. De forma simplificada, quando falamos em sistematizar estamos sempre tratando do desafio de promover a leitura da realidade para transformá-la”. A integração desses olhares, durante o curso, foi exercitada a partir de estratégias, trabalhos em grupos, dinâmicas e leituras que buscaram aprofundar caminhos pelos quais os facilitadores das regiões poderão orientar o trabalho de sistematização das experiências.
Nesse percurso, uma das principais referências teóricas apontadas ao longo do curso, é a produção de Oscar Jara, educador popular e coordenador do Programa Latinoamericano de Apoio à Sistematização de Experiências do CEAAL (Conselho de Educação de Adultos de América Latina), cuja produção aponta acúmulos que permitem compreender que a sistematização pode ser compreendida como um processo permanente, cumulativo, de criação de conhecimentos a partir de nossa experiência de intervenção numa realidade social, como um primeiro nível de teorização sobre a prática. A sistematização é, portanto, observada como interpretação crítica de uma ou várias experiências que, a partir de seu ordenamento e reconstrução, explicita a lógica do processo vivido*.
A experiência da AARJ na sistematização de experiências
Para projetar novos caminhos para a sistematização, Guilherme Strauch, Gerência de Agroecologia da Emater e facilitador do curso, apresentou os aprendizados construídos ao entorno da publicação “Caminhos agroecológicos do Rio de Janeiro: caderno de experiências agroecológicas”, organizado pelo Grupo de Trabalho de Construção do Conhecimento Agroecológico da AARJ e disponível para download.
O caderno reflete parte dos esforços de sistematização da AARJ e foi viabilizado pelo projeto “Desenvolvimento participativo de metodologias e processos de construção de conhecimento agroecológico no estado do Rio de Janeiro” (AARJ/UFF), projeto que antecede as atuais ações integradas de ensino, pesquisa e extensão coordenadas pelo NIA da UFRRJ.
Guilherme conta que “a AARJ vem nos últimos anos realizando esforços de mapeamento, identificação e sistematização de experiências em agroecologia no estado do Rio de Janeiro”. Nesse processo, as estratégias de mapeamento, identificação e sistematização de experiências utilizadas pela AARJ se valeram de metodologias participativas, onde o diálogo de saberes e os intercâmbios entre as iniciativas formaram a base de todo o trabalho de articulação e consolidação da rede estadual.
Por fim, Strauch e Cristhiane ainda contextualizam nacionalmente o processo de sistematização compartilhando iniciativas estimuladas pela Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), por meio dos Congressos Brasileiros de Agroecologia (CBAs), do Encontro Diálogos e Convergências (2011) e de outras atividades como, por exemplo, as previstas pelo projeto “Sistematização de experiências, construção e socialização de conhecimentos: o protagonismo dos Núcleos e Rede de Núcleos de Estudos em Agroecologia das universidades públicas brasileiras”.
Caminhos e Ferramentas para a Sistematização das Experiências
Ao longo dos três dias do curso, os participantes foram provocadas a pensar quais seriam os objetivos e objetos da sistematização. A partir de suas realidades distintas, os representantes das regiões exercitaram a construção de linhas do tempo, que levantaram fatos históricos sobre o contexto das experiências agroecológicas em cada território e iniciaram o processo de construção de eixos temáticos que pudessem, ao mesmo tempo, agregar experiências e definir quais denúncias e anúncios as sistematizações buscam revelar.
Marcos Vinícius, representante da Costa Verde, quilombola da comunidade do Bracuí e egresso da Licenciatura de Educação do Campo (LEC), fala da prática da história oral no território em que mora. Segundo ele, “nós jovens, depois da LEC, passamos a atuar de forma mais qualificada na comunidade. Grupos de visitantes, antes recebidos por outras pessoas, passaram a contar com a gente nas atividades. Antes precisava vir alguém de fora para falar da nossa comunidade, hoje, contribuímos bem com esse processo e trabalhar a história oral foi muito importante para isso”.
Para Catarina, assentada na região Norte do estado, as conversas sobre sistematização suscitam debates sobre seus próprios processos de experimentação enquanto agricultora agroecológica. Ela comenta que“é muito interessante esse registro. Lá no começo do sítio, tudo que eu ia fazer dentro da agroecologia, eu avaliava. Pensava o positivo e o negativo. A agroecologia tem disso e temos que olhar para as experiências que estão há muito tempo em transição para perguntar o porque não andam”, diz ela reforçando que as sistematizações também guardam o desafio de apontarem os gargalos das práticas e das experiências.
Os aprendizados mobilizados pelo curso, como trazem os participantes, sinalizam novos elementos para refletir e interagir com as experiências articuladas nos territórios. Dessa forma, o segundo módulo finalizou suas atividades com a revisão dos principais elementos que farão parte do processo de escolha das experiências que serão sistematizadas em cada região. Ao total serão cerca de três experiências por território compondo um novo mosaico de histórias de vida que serão reunidas e registradas pelo projeto.
Agora, os antenas retornam com o desafio de garantirem espaços coletivos nos quais o conjunto de entidades, agricultoras e agricultores atuantes em cada região serão ouvidos e envolvidos em cada etapa da sistematização.
Por fim, a construção de uma agenda integrada de trabalho encerou o último dia de trabalho do grupo, indicando aos participantes a mobilização dos territórios para três importantes atividades: a Excursão Científica, que será realizada de 25 a 27 de maio na Costa Verde do Rio de Janeiro; a Caravana Agroecológica e Cultural do Rio de Janeiro, prevista para agosto; e o Seminário Regional Sudeste, mobilizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), que será realizado de 9 a 12 de junho, com o objetivo de promover processos de revisão do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo).
Com a reflexão de Boaventura de Souza Santos, em seu livro “A crítica da razão indolente”, para quem “não parece que faltem no mundo de hoje situações ou condições que nos suscitem desconforto e indignação e produzam inconformismo”, a sistematização de experiências segue como um desafio e uma estratégia fundamental no diálogo com a sociedade sobre a agroecologia e, sobretudo, sobre um novo mundo possível e necessário.
(Referências: Jara Oscar a Oscar: Conocer la realidad para transformar la, Serie Pensando la Educación Popular, No.7, ALFORJA, San José, Julio de 1991)