Somos um movimento de organizações da sociedade que a partir da identificação, sistematização e mapeamento de experiências procura se articular no estado com o objetivo de fortalecer as iniciativas agroecológicas
“O povo sempre dá um jeito” diz seu Valdivino, agricultor de Paraty, durante a Feira do IV Encontro Estadual que ocupa o centro da cidade e o Mercado do Produtor Rural com alimentação saudável para todas e todos
Ocupar a cidade com comida de verdade: a feira e a história do Mercado do Produtor
As feiras são, historicamente, espaços de ocupação e resistência popular. Na construção da agroecologia, elas são caminhos concretos de geração de renda para as famílias, troca de saberes e de diálogo com a sociedade. Durante o IV Encontro Estadual de Agroecologia do Rio de Janeiro, realizado de 26 a 28 de outubro, a feira – que aconteceu no segundo dia (27) de atividades – foi um evento aberto e articulador da diversidade que se expressa nos alimentos, fitoterápicos, artesanatos, na música e no cuidado com as crianças.
A partir dessa construção, a Feira deixa de ser um momento apenas de comercialização e o IV Encontro deixa de ser apenas um espaço formal de debate, planejamento e análise e, com a feira, passa a ser também um espaço de troca de saberes, aproximação com a sociedade e articulação política.
Para falar da feira, conversamos com seu Valdivino dos Remédios. Agricultor agroecológico, morador do Assentamento São Roque e um dos principais entusiastas e defensores das lutas da agricultura camponesa na cidade e na região.
Seu Valdivino e Seu João, agricultores de Paraty, foram companheiros de gestão no Sindicato Rural de Paraty
Entrevistar Seu Valdivino é quase o mesmo que viajar pelas ruas de pedra e sertões de Paraty, em diferentes décadas. Na conversa com ele, mergulhei no tempo em que o Sindicato Rural de Paraty foi fundado, há 43 anos atrás,omo conta ele, um tempo em que falar de agricultura familiar era arrumar briga feia ou não ser escutado.
Sorrimos pensando juntos que a coisa mudou, mas não mudou tanto assim. Enfrentar o agronegócio continua sendo um baita desafio e uma luta cotidiana. Aqui em Paraty, temos muitos exemplos de como essa luta permanece e se complexifica em múltiplas facetas como diz, com a voz firme no microfone, Luana Carvalho – da comissão organizadora – enquanto eu e seu Valdivino conversávamos: “nosso território é para o Bem Viver, Não para o Turismo” este, predatório que explora, expulsa e privilegia.
Para contar sobre onde nasceu, não basta dizer o nome do Morro dos Caboclos, Seu Valdivino precisa contar que é lá que seu umbigo foi enterrado e onde as tangerinas e bambus que seu pai plantou ainda estão em pé. Ao lembrar da história do Mercado do Produtor ele vai resgatar governos, parcerias e articulações bem anteriores a 1992, quando o prédio é inaugurado.
Artesanatos produzidos em parceria com a natureza e a agricultura: saber ancestral
Na prosa ele ainda deixa um recado político importante para esses tempos de retrocessos, “não podemos comemorar só o prédio pronto, tem que aguardar até que a gente possa realmente entrar”, alerta ele ao falar dos entraves gerados com a mudança da gestão municipal.
“O povo sempre dá um jeito!”, Seu Valdivino compartilha que, antes do Mercado realmente ser liberado para a gestão das agricultoras e agricultores familiares, as famílias não deixaram de comercializar seus produtos em pequenas feiras e praças, trazendo outra lição importante: “precisamos seguir e encontrar caminhos independente do que acontecer”.
Eu quase senti o calor da ciranda e da noite quente ouvindo Seu Valdivino contar sobre a festa de inauguração do Mercado. “Foi uma ciranda grande, bonita e cheia de gente, quase perdi os botões da calça”, lembra ele contente. Agroecologia é do povo, é alegre, é cultura, é festejo, são histórias de vida e resistência.
Sabores: saúde, diversidade e resistência nos territórios
Neuza Marcelino de Guapimirim
A agricultora Neuza Marcelino estava feliz da vida, conseguiu trazer para feira pela primeira vez a geleia de amora com frutos do seu próprio sítio. Ela faz parte da Articulação de Produtores Rurais e Artesãos da Micro-Bacia Fojo, que produzem sem veneno em Guapimirim, região metropolitana do Rio. Além da geleia, veio cacau, chuchu, banana, cebola, abóbora e doces em geral. Pela primeira vez em Paraty, depois dos debates e da feira, Neuza vai conhecer o centro histórico e as praias da Costa Verde.
Esse é um dos objetivos da Feira na programação dos Encontros de Agroecologia, construir espaços de troca, comercialização e visibilização dos alimentos cultivados em cada um dos territórios do estado. Palmito, banana, couve, alface, cheiro verde, farinha, batata doce, aipim, inhame, entre muitos outros alimentos saudáveis. É a produção da agricultora Maurília Pimenta, da Associação Agroecológica de Produtores Orgânicos de Paraty, que vai direto para a merenda das crianças da rede municipal, e para a Feira do IV Encontro: “Aqui a gente vê agricultores de diferentes regiões. Dá ânimo porque mostra que tem como sobreviver da agricultura, colocando alimentação saudável na mesa dos nossos filhos”.
Juliana Medeiros, de Magé
Bananada sem açúcar, goiabada cascão, geleia de mamão com gengibre, pimenta, pitanga. Tudo isso produzido na cozinha colher de pau da querida Juju Diniz, agricultora de Magé, na região metropolitana. Além destas delícias, ela é especialista em farinhas. Trouxe para feira a de maracujá, banana verde, jiló, batata doce e berinjela. A de quiabo, que ajuda no colesterol e na diabetes, acabou rápido e o povo pergunta “onde e como posso comprar mais”, é o potencial de articular essa rede de sabores, dando exemplos concretos na Feira.
Saberes: ancestralidade, autonomia e diálogos
A artesã Priscila Rete, da etnia Guarani, veio da aldeia Rio Bonito em Ubatuba com seu artesanato de produtos naturais. Trouxe cestos de bambu taquara, pulseira de semente de açaí, colar de casca de coco, entre outras lindezas. Rete faz parte do Fórum em Defesa do Território Tradicional de Angra, Ubatuba e Paraty.
Priscila Rete, da etnia Guarani,
A feira buscou reunir a diversidade de saberes tecidos na construção da agroecologia acolhendo as experiências das comunidades tradicionais, dessa forma, diferentes etnias e grupos foram convidados de modo que fosse possível continuar construindo espaços de encontro e articulação para além do IV Encontro.
Outro exemplo foram os Guarani da Aldeia Araponga também estão presentes na feira. A artesã Marciana Pará-Mirim trouxe colares, chocalhos e a produção audiovisual indígena reforçando que Agroecologia é diversidade e cultura.
Conceição, do Assentamento Roseli Nunes
Paçoca feita no pilão, doce de leite, doce de mamão, farinha de tapioca e muito mais direto de Piraí, Vale do Paraíba Fluminense. Os saberes estão permeados de saberes sobre o modo de cultivar, cozinhar e conviver com a natureza e toda sua riqueza. Dona Conceição, do assentamento Roseli Nunes, do MST-RJ, fala da sua produção de abóboras e da felicidade de encontrar jovens que já conheceram o assentamento em que ela mora através dos Estágios de Vivência construídos pelos movimentos sociais em parceria com as Universidades.
Enquanto a feira acontecia em frente ao Mercado do Produtor, o IV Encontro também ocupava o prédio do terminal rodoviário de Paraty com a construção das Instalações Pedagógicas. Após intensas articulações com a Prefeitura, a comissão organizadora viabilizou a ocupação de mais esse espaço público. Agricultoras, jovens, representantes dos movimentos sociais, técnicos de ATER e membros das associações e cooperativas coloriram o prédio.
Organizados pelas regiões do estado, as e os participantes receberam uma mapa e ícones representativos das práticas agrícolas, ameaças e anúncios dos territórios. Em parceria com a Associação dos Geógrafos do Brasil (AGB), o IV Encontro Estadual de Agroecologia do RJ propõe a construção de uma cartografia colaborativa como exercício para contribuir com o diagnóstico e análise dos diferentes territórios.
Biblioteca de ícones identifica denúncias e anúncios nos territórios
A metodologia foi construída em quatro meses, a ideia é que agora ela seja exercitada por cada região, e consiga visibilizar as convergências das lutas permitindo uma leitura geral do estado. O desafio é continuar construindo e refletindo a partir das trocas, garantindo e agregando as diferentes lutas e gerações presentes nos territórios. As regiões irão levar o material construído para seus territórios, como uma uma ferramenta interativa em suas articulações locais.
Sementes: encantamento, esperança das crianças e os frutos dessa construção
Troca de Sementes de todo o estado – momento de partilha de saberes e práticas
As sementes crioulas são um patrimônio de comunidades tradicionais, assentadas/os da reforma agrária, quilombolas, indígenas e caiçaras. São variedades desenvolvidas ao longo de séculos de seleção e adaptação. Durante a Feira houve um momento especial para a troca e diálogo sobre as sementes, seus modos de cultivo e suas histórias.
Essa diversidade de atividades e a rapidez com que as sementes foram distribuídas demonstram o papel que elas desempenham na continuidade das práticas agrícolas. Ao chegar na feira encontro Dona Rita comemorando a semente tão esperada de Chuchu de vento. O sorriso dela fala muito sobre o papel desses momentos de intercâmbio e valorização de cuidado ancestral!
Luana Carvalho relembra que, somente dos territórios, foram 210 representantes de experiências concretas de construção cotidiana da agroecologia. Ela ainda lembra e agradece o apoio e a participação do Grupo de Mulheres da Economia Solidária responsável pela costura e cuidado com os materiais distribuídos no encontro.
Maracatu Palmeira Imperial na rodoviária de Paraty
O dia ainda contou com caldo de cana agroecológico – que deu mais sabor ao almoço do Campinho servido na rodoviária – e mais de nove atividades culturais, entre as quais destaca-se o Maracatu que animou as ruas do centro e as atividades para as crianças da Cia Fulô Circo Teatro. Assim como as atividades culturais, a Plenária das Mulheres e dos Jovens que também aconteceram no dia da Feira e terão relatos específicos.
A sensação de que é preciso continuar ocupando as ruas de Paraty com a agroecologia e cultura e seguir no diálogo com a população transborda entre todos que construíram e participaram da Feira “Sabores, Saberes e Sementes”. As ideias ganham novos temperos e a alegria vivenciada em Paraty inspira o fortalecimento de outras lutas e resistências no estado do Rio de Janeiro.